segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sentimental

    
    
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

— Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”

  
  
  
(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Uma Mulher Amada


Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.

 

(Safo)

Quietação

 

No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos...
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite...
Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junta de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.
Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti.


(Vinícius de Moraes)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Retrato

Vou pintar o seu retrato.
Na boca, pinto o sol;
nos olhos, duas estrelas;
nos cabelos, um arco-íris;
no teu coração escondido,
pinto metade do meu.

 

(Elias José)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Romanza

Branca mulher de olhos claros
De olhar branco e luminoso
Que tinhas luz nas pupilas
E luz nos cabelos louros
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Andavas sempre sozinha
Sem cão, sem homem, sem Deus
Eu te seguia sozinho
Sem cão, sem mulher, sem Deus
Eras a imagem de um sonho
A imagem de um sonho eu era
Ambos levando a tristeza
Dos que andam em busca do sonho.

Ias sempre, sempre andando
E eu ia sempre seguindo
Pisando na tua sombra
Vendo-a às vezes se afastar
Nem sabias quem eu era
Não te assustavam meus passos
Tu sempre andando na frente
Eu sempre atrás caminhando.

Toda a noite em minha casa
Passavas na caminhada
Eu te esperava e seguia
Na proteção do meu passo
E após o curto caminho
Da praia de ponta a ponta
Entravas na tua casa
E eu ia, na caminhada.

Eu te amei, mulher serena
Amei teu vulto distante
Amei teu passo elegante
E a tua beleza clara
Na noite que sempre vinha
Mas sempre custava tanto
Eu via a hora suprema
Das horas da minha vida.

Eu te seguia e sonhava
Sonhava que te seguia

Esperava ansioso o instante
De defender-te de alguém

E então meu passo mais forte
Dizia: quero falar-te
E o teu, mais brando, dizia:
Se queres destruir... vem.


Eu ficava. E te seguia
Pelo deserto da praia
Até avistar a casa
Pequena e branca da esquina.
Entravas. Por um momento

Esperavas que eu passasse
Para o olhar de boa-noite
E o olhar de até-amanhã.

Uma noite... não passaste.
Esperei-te ansioso, inquieto
Mas não vieste. Por quê?

Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho
Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Branca mulher de olhos claros
Minha alma ainda te deseja
Traze ao meu passo cansado
A alegria do teu passo
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?


(Vinícius de Moraes, Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, 1933)

Urgentíssimo

 

Alô, alô, repórter, urgentíssimo:
avise à minha amada que a espero
aflito, no lugar de sempre.



(Elias José)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Declaração de Amor em Vários Sabores

 

Tentei dizer o quanto te amava, aquela vez, baixinho,
mas havia um grande berreiro, um enorme burburinho
e, pensando bem, um berçário não é o melhor lugar.
Nós dois de fraldas, lado a lado
cada um recém-chegado.
Você sem poder ouvir, eu sem saber falar.

Tentei de novo, lembro bem, na escola.
Com um PS num pedido de cola
interceptado pela professora feito gavião.
Eu fui parar na diretoria
enquanto você, desalmada, ria
- curta é a vida, longa é a paixão.

Numa festinha, ah, suas festinhas, disse tudo:
”Te adoro, te venero, na tua frente fico mudo.”
E você tomando goles de um silencioso Hi-Fi.
Só mais tarde eu atinei:
cheio de Cuba e amor, me enganei.
Tinha dito tudo para o senhor teu pai.

Gravei, em vinte árvores, quarenta corações.
O teu nome e o meu, flechas, palpitações.
No mal-me-quer, bem-me-quer, dizimei jardins.
Resultado: sou pessoa pouco grata
corrido aos gritos de “Mata!”
por ambientalistas e afins.

Recorri, desesperado, a um gesto obsoleto:
”Se não me seguram, faço um soneto!”
E não é que fiz, e até com boas rimas?
Mas você nem ficou sabendo.
Ele continua inédito, por você plangendo
- mas fui premiado num concurso em Minas.

Comecei a escrever, com pincel e piche
em muros brancos, o asseio que se lixe,
todo o meu amor para a sua ciência.
Fui preso aos socos e fichado.
Dias e mais dias interrogado.
Era PC, PC do B ou outra dissidência?

Te escrevi com lágrimas, suor e mel
(você devia ver o estado do papel)
uma carta longa, linda e passional.
Como resposta nem uma cartinha.
Nem um cartão, nem uma linha!
Vá se confiar no Correio nacional…

Com uma serenata, sim, uma serenata
como as do tempo da “Cabloca ingrata”
me declararia, respeitando a métrica.
Ardor, tenor, calçada enluarada
havia tudo sob a sua sacada
menos tomada pra guitarra elétrica.

Decidi, então, botar a maior banca
e escrever no céu com fumaça branca:
”Te amo, assinado…” e meu nome bem legível.
Já tinha avião, coragem, brevê
tudo para impressionar você…
Veio a crise do petróleo e faltou o combustível.

Ontem, finalmente cheguei ao seu ouvido
e, na discoteca, em meio ao alarido
despejei o meu pobre coração.
Falei da devoção há anos entalada
e você disse: “Com essa música, não escuto nada!”
Curta é a vida, longa é a paixão.

Na velhice, num asilo, lado a lado
em meio a um silêncio abençoado
te direi tudo o que eu queria, meu bem.
Meu único medo é que então
empinando a orelha com a mão
você me responda… “Hein?”

(Luis Fernando Veríssimo)

Êxtase

 

Quando lá no céu surgir
uma peregrina flor,
caia de joelhos,
beije sua imagem
no espelho.
Você é um milagre.

(Fausto Wolff)

“Como Posso Saber Se Sou Amado?”

 

Só pode haver respostas parciais que precisam ser aperfeiçoadas com o toque pessoal com que cada contribui para o relacionamento.

Naturalmente, quando somos amados, aqueles que nos amam querem que sejamos o que somos, não o que eles são. Alegram-se por estarmos crescendo com nossas ideias, nossos sonhos, nossa indiviadualidade, nosso futuro. Querem que sejamos independentes e livres, não submissos e medrosos. Aqueles que nos amam querem simplificar nossa existência, não protegendo-nos da dor, mas estando presentes quando precisamos deles. Encorajam os riscos porque compreendem que, nos arriscando, continuamos a crescer. |Ajudam-nos a encontrar alternativas para o nosso comportamento, alegrando-se com nosso sucesso e trazendo consolo para os nossos fracassos. Não são apenas amantes, mas amigos, fiéis e dispostos a dar um desconto nas nossas imperfeições.




(Trecho da página 23 do livro O Paraíso Fica Perto, de Leo Buscaglia.)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Coisas Que Você Não Fez

 

Lembra-se do dia em que tomei emprestado o seu carro novo em folha e o amassei?
Pensei que me mataria, mas você não me matou.
E lembra-se da vez em que o arrastei para a praia e você disse que ia chover, e choveu?
Pensei que ia dizer “Eu não disse?”. Mas você não disse.
Lembra-se da vez em que namorei todos os caras para lhe fazer ciúmes, e consegui?
Pensei que você me largasse, mas você não largou.
Lembra-se da vez em que derramei torta de morangos em cima do tapete do seu carro?
Pensei que fosse me bater, mas não bateu.
E lembra-se da vez em que me esqueci de lhe avisar que a festa era a rigor, e você apareceu de jeans?
Pensei que fosse me largar, mas não largou.
É, houve uma porção de coisas que você não fez.
Mas me aguentou, e me amou, e me protegeu.
Havia muitas coisas que eu queria lhe retribuir quando você voltasse do Vietnã.
Mas você não voltou.








Este poema, encontrado na página 88 do livro Vivendo, Amando & Aprendedo, de Leo Buscaglia, explica a respeito de adiar as coisas indefinidamente, em especial, cuidar das pessoas de quem realmente gostamos.

A autora deseja permanecer anônima.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Eu Fiz Um Poema

 

Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa
eu fiz um poema belo como um vitral
claro como um adro…
Agora
não sei que chuva o escorreu
suas palavras estão apagadas
alheias uma à outra como as palavras de um dicionário
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta.
O vulto de um velho arqueólogo curvado sobre a terra…

Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?

(Mario Quintana)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Para Uma Menina Com Uma Flor

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, “Minha Namorada”, a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora – tão purinha entre marias-sem-vergonha – a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, e põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos – eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

(Vinícius de Moraes, Para uma Menina com uma Flor, 1966)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

As Sem-Razões do Amor

  

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

                
   
    

(Carlos Drummond de Andrade)